Guillermo del Toro já nos provou, por várias vezes até, ter um mundo interior vasto, onde a fantasia, o horror, o sonho e a magia se combinam numa simbiose perfeita, originando sempre obras diferentes, irreverentes e pungentes, como são exemplo Cronos (1993), Mimic (1997), Nas Costas do Diabo (2001), Blade II (2002), Hellboy (2004) e O Labirinto do Fauno (2006), não nos podemos esquecer também que é este grande artista e visionário que está a cargo da adaptação para cinema de mais um grande livro do mestre Tolkien - O Hobbit.
Muito já foi dito sobre as características deste realizador, mas, e para fundamentar a sua presença neste blog, é preciso demonstrar até onde vai del Toro na sua visão interior sobre a importância de mantermos intactas as nossas crianças interiores, sobre a força que uma criança pode ter e sobre a importância vital que isso pode representar na salvação do nosso Mundo.
As crianças são parte integrante de quase todas as obras do artista, pelo menos da suas mais pessoais, Nas costas do Diabo e em O Labirinto do Fauno, temos como personagens centrais as crianças num ambiente de guerra, onde a sua inocência e pureza é sempre colocada em contrapartida com a crueldade e frieza da guerra e o maniqueísmo dos adultos. Del Toro não quer saber das guerras, o seu interesse é mostrar como as crianças conseguem ver e permanecer num mundo fantástico enquanto os adultos apenas vêem o que os rodeia e por isso lutam pela conquista de território, de poder e de tudo, se ao menos eles pudessem ver o que viam em crianças talvez ai soubessem que isto não é importante.
Esta premissa é mais desenvolvida neste seu recente filme, Hellboy II, aqui é-nos contada uma história dos tempos antigos, naqueles tempos em que o Homem ainda sabia da existência de elfos, gnomos e fadas, onde viviam em harmonia até este começar a sentir desejos insaciáveis de poder. As guerras começaram e isso levou à divisão de territórios, ficando o fantástico confinado ao submundo e o Homem à superfície para poder expandir os seus desejos. A visão que del Toro nos dá dos Homens não é das mais bonitas, aliás como sempre, mas não deixa de ser bastante acertada, exagerada talvez mas muito verdadeira. Nós parecemos nunca estar satisfeitos com nada, se conquistamos isto, a seguir vamos querer aquilo, parece de facto que o nosso coração nunca está completo, que há sempre espaço vazio que necessita ser preenchido a todo o custo. Para mim a resposta é simples, não percebemos que as coisas têm a importância que lhes damos, que todos os dias vencemos batalhas enormes contra nós próprios e que todos os dias alcançamos mais um pedaço da nossa obscuridade, mas isso, como ninguém sabe e não vê, não tem interesse. Que a fonte de satisfação está dentro e nunca no exterior, o Amor Incondicional por tudo e todos é fonte suficiente para preencher o vazio, eu sei o por experiência própria.
Mas voltando às crianças, estas simbolizam nas suas obras exactamente essa vertente, a despreocupação, a fé, a força de acreditar num mundo melhor, que hoje parece estar cada vez mais difícil de conseguir, todos se queixam e criticam aumentando esta corrente mundial de pessimismo. Del Toro, através de um simples plano mostra-nos como é ambíguo viver as nossas crenças, como a cada segundo temos de realizar escolhas que influenciarão o nosso futuro e o dos outros, em pé num néon de hotel, com uma criança no braço direito e uma arma no braço esquerdo, Hellboy vê-se confrontado com a escolha difícil: destruir um último Elemental e com ele toda a esperança de um mundo de fantasia ou perpetuar a destruição dando continuidade a este Homem que parece não saber para onde vai. São estas as escolhas que todos os dias fazemos, destruir a nossa parte interior fantástica ficando cada vez mais adulto de acordo com os padrões da sociedade actual ou dizer não e deixar de ser como todos os outros e fazer aquilo que realmente temos vontade de fazer. Porque nos permitimos diariamente matar mais um pouco da nossa inocência, da nossa pureza, porque deixamos que os amargos dos outros nos poluam a nós? Temos de ter mais consciência no dia-a-dia dessas pequenas escolhas para não nos deixarmos ser influenciados pelo exterior na nossa escolha, Hellboy funciona ao instinto, nós temos de descobrir como melhor funcionamos.
Chegámos ao ponto em que temos de falar da personagem Hellboy e do que ela representa. Filho supremo do Diabo, criado para destruir o mundo, esta criatura foi educada por um humano que o criou exactamente como se fosse uma criança normal como todas as outras, dando a Hellboy esse sentimento de que é como todos os outros, mas infelizmente a sua aparência não o deixa ser como todos os outros, ele é um demónio vermelho e por muito que por dentro seja como os humanos, por fora não é nem nunca será. E para nós isso é tudo o que conta, por muito que queiramos o contrário, a aparência continua a ser muito importante.
Hellboy representa o filho de Deus expulso do Éden, tentado pelo demónio e que tem como única missão destruir este planeta tão belo onde vivemos. Hellboy somos nós, cada um de nós, que dentro de si sabe de onde veio, mas que necessita por demais de sentir que pertence aqui, pois o seu coração tem um vazio que nunca se preencherá a não ser pela religação com o divino, que se torna em algo abstracto ao invés de ser algo real que existe. À medida que vamos crescendo e deixando de ouvir histórias para dormir, referido de forma belíssima no filme, vamos começando a desligar-nos desse mundo fantástico e começando a acreditar cada vez mais neste mundo real dos sentidos e assim o nosso vazio começa a crescer. Começamos a sentirmo-nos cada vez mais desligados da nossa essência e o vazio aumenta e assim sucessivamente, até que um dia acordamos numa vida disfuncional, com um casamento falhado, filhos infelizes, trabalho frustrado, amigos superficiais e pensamos naquilo que nos tornámos. Neste ponto ou temos ainda a criança interior inteira e conseguimos recuperar tudo ou a violação foi demasiada e ela não tem força suficiente para lutar, o que as personagens Johann Krauss e Manning representam muito bem.
Por último temos a representação do Amor por outro como o ponto de equilíbrio necessário para a nossa personalidade. Hellboy e Liz Sherman são o par ideal, ele é a força bruta da Terra e ela do Fogo. Neste episódio temos o amor muito presente, mas mais uma vez del Toro mostra-nos amores pouco conseguidos, martirizados ou impossíveis. A iconização do amor, depois da história de Jesus Cristo que morreu por amor, ficou completamente influenciada e para temos um amor romântico, puro, verdadeiro alguém tem de morrer. Mas sobre isto falarei outro dia.
É assim, que através de um simples filme, podemos conseguir tirar a maior lição de vida, Guillermo del Toro tem vindo a alertar-nos para isto e desta vez fá-lo com mais veemência, não deixem que a vossa criança interior morra, não deixem que as nossas futuras crianças deixem de ser crianças, vamos preservar o mundo fantástico pois ele é real, verdadeiro e basta que nele acreditemos para que tudo seja revelado.
Para terminar esta partilha longa ainda desejo deixar um poema de Miguel Torga, algo que creio rematar o meu ponto de vista de forma pungente.
Pedagogia
Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição,
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!
Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!
Miguel Torga
Num dia de Lua e de Gabriel, de São Luís de França e de São Gelásio
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